Literatura Sobre São Tomé e Príncipe


A Negra
(De Caetano Costa Alegre, escritor Santomense do século XIX, feito em 1884)

Negra gentil, carvão mimoso e lindo
           Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
           Pelo calor do Pai,

Encosta o rosto, cândido e formoso,
           Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
          Porque te velo eu.

Não chores mais, criança, enxuga o pranto
        Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
        Os dentes de marfim.

No teu divino seio existe oculta
        Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
        Que tanto me seduz.

Eu gosto de te ver a negra e meiga
        E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
        Pelas chamas do amor;

Que outrora foste neve e amaste um lírio,
        Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
        O seio virginal.

Não chores mais, criança, a quem eu amo,
        Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
        No campo, ou na jardim.

Tu tens meu amor ardente, e basta
        Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
       Esquece a flor de lis.




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Júlia e Maria
(De Caetano Costa Alegre, escritor Santomense do século XIX)

Maria era bonita e tão airosa
Como outra não havia em toda a aldeia,
E Júlia, sua irmã, era tão feia
Que nem parecia irmã daquela rosa.

Ambas, tal como a chama que incendeia,
Tinham por mim uma paixão fogosa;
Casar comigo lhes passou na ideia,
Falou-me nisso um dia a mais formosa.

E eu respondi-lhe - bela camponesa,
És gentil, mas quem busca só beleza,
sujeita-se a correr bastantes perigos;

Tua proposta, desde já recuso,
Caso com Júlia, porque assim escuso
De andar em guarda contra os meus amigos.



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Conto "Dáy" Mostra um pouco da Mulher de São Tomé e Príncipe
Dáy


vinha trazer-me o pequeno almoço de manhã cedo.  Abria a porta, espreitava  e perguntava, baixinho:

- Posso entrar?

O tabuleiro tinha um pano bordado, que ela escolhia todos os dias de cores diferentes, e tudo nele estava disposto simetricamente. O corpo pequenino segurava o tabuleiro de encontro ao peito magro e ela esticava os braços até o pousar devagarinho nos meus joelhos. 

Abria as vidraças, afastava a rede-mosquiteiro  e escancarava as portadas das janelas, de ripas finas,  voltando a fechar os vidros.

A luz forte entrava e com ela o colorido e os perfumes do jardim.  Sentava-se na beira da cama, ajeitava-me o lençol e ficava à espera que eu conversasse com ela.

Eu, que acordava sempre estremunhada, sem vontade de falar, ia bebendo o café aos golinhos, começando devagar o meu dia. 

Ela tinha um nome complicado, cheio de tt e de zz, mas eu chamava-lhe Dáy, seu  nome de casa, como se usava na ilha.

- Bom dia,Dáy, correu bem a manhã?

Agitava-se toda e respondia:

-  Mais ou menos, dôtôrra...

Era a resposta que eu me habituara a ouvir em S. Tomé quando perguntava pela vida, pela saúde, pelo dia. Mais ou menos... ou então leve leve  que soava, docemente, levi  levi.  E tão pouco parecia  dizer tudo.

Abanava a cabeça, alisava o vestido, com as mãos espalmadas. Pela expressão do rosto, percebia como fora esse mais ou menos, se tinha havido problemas em casa, se a mãe lhe tinha batido por ter brigado com os irmãos, ou por não ter ido buscar água à fonte. A mãe era a minha cozinheira e todos  os dias se zangava com ela.

- A dona dá  muita confiança, ela  é  minina disubidente!

Sentada na cama, a Dáy ia dizendo, arrastando as palavras:

-  Sabe, dôtôrra...

A sua voz rouca e o modo de carregar no r eram inconfundíveis.

-  Eu não gosto de ninguém no mundo!

E acentuava no mundo com mais força, inclinando-se para a frente.

- De ninguém mesmo?..., brincava eu.

Ia falando, distraída, enquanto contemplava o meu jardim africano: a sebe de ibiscos vermelhos, o tronco rugoso da mangueira, mesmo em frente da janela, com os tufos de folhas escuras e os ramos pesados das mangas, os caules frágeis dos papiros, o colorido vítreo das rosas de porcelana.

E continuava, sem a olhar: 

-   E por quê, Dáy? Por que é que não gostas de ninguém?

E, rindo, continuava:

- Nem de mim?... 

-  Nem da dôtôrra! De ninguém mesmo!, respondia, com ar convencido.

Fechava os olhos, de lábios apertados, voltava a abanar a cabeça. Eu tirava um livro da mesinha de cabeceira, pousava-o na cama, ou folheava-o, desejando apenas encostar-me nas almofadas, sem ter que a ouvir. Mas ia dizendo:

 - Por quê, Dáy? Diz lá...

-  Por quê? Porque ninguém gosta de mim!

Olhava-me de lado, espreitando a minha distracção:

- Oh! Oh! Dôtôrra não está a ouvir nada!  Eu não disse?  Ninguém gosta de mim!...

Amuada, levantava-se. De queixo erguido, as pálpebras semicerradas, ia-se embora, fechando a porta com força.

Durante o resto  da manhã passava por mim, sem me falar, fingindo não me ver.  A mãe resmungava:

-É minina mal nascida!...

Dáy virava a cara, fechava  o rostozinho, onde os olhos amendoados brilhavam orgulhosos, e fugia pela cozinha.  Pouco depois, ouvia as gargalhadas rouca dela, a brincar com os irmãos Quando chegava a hora da escola, vinha a correr, com os cadernos na mão, esquecida do amuo:

- Dôtôrra, esqueci os trabalhos de casa, a professora vai zangar-se bastante!

Mostrava-me as folhas em branco.

- Ai, Dáy, Dáy!...

Sentávamo-nos no varandim da cozinha a resolver os problemas. No fim, corria  a lavar-se e a pentear as trancinhas que enfeitava com duas ou três contas de cor. 

Antes de sair, vinha ver se tinha alguma coisa para ela: um doce, um chocolate?...  Vinha mordendo um safu e estendia  a mão cheia:

- Quer um safu?

     O gosto acidulado do fruto ficava-me na boca enquanto ela se virava para trás:

-  Tchau, dôtôrra!

Era assim a minha amiga Dáy...

Certas manhãs falávamos muito. Das colegas da  escola, das mangas e das carambolas que havia no jardim, do pequeno sagui que aparecera a roubar as uvas e cuspia as grainhas para cima de nós.  E ríamos.  Outras vezes, eu ralhava-lhe porque tinha sido malcriada com a mãe, porque não queria tomar banho, ou porque nunca fazia os deveres. Ela encolhia os ombros estreitos, esticava o lábio inferior, abanava a cabeça como se isso não a preocupasse. 

Mas se eu lhe dizia,  com doçura, pousando a minha mão na dela:

- Eu gosto de ti, Dáy, tens de ser boa, tens de estudar, deves ser uma menina lavadinha e bonita...

Ela respondia logo: 

- E por que é que eu hei-de fazer isso tudo?!  Quem é que quer saber de mim?...

Punha a cabeça de lado, olhando-me pelo canto do olho, à espera: 

-Eu,  Dáy,  eu quero saber de ti! E quero que sejas boa, que aprendas, porque eu gosto muito de ti! Sou a tua maior amiga, não sou?

- Hum...

Suspirava, as pálpebras tremiam e grossas lágrimas pingavam, uma a uma, na colcha e a sua mão pequenina, de unhas pintadas de vermelho, apertava a minha com força.

Um dia, a minha cozinheira foi-se embora.  A casa de madeira sobre estacas onde viviam,  na subida da Chácara, aluíra com as chuvadas e foram viver para casa da irmã, longe, a muitos quilómetros da cidade. 

Foi-se embora e levou os filhos. Levou a alegria da minha casa. Durante muito tempo não soube notícias deles, não vi a Dáy...  Acabara-se a algaraviada de todas as manhãs, ao acordar... Não havia já quem fizesse correrias pelo jardim, quem subisse à goiabeira e trincasse os frutos ainda verdes e me trouxesse as carambolas douradas...

Uma manhã, ela voltou: 

-  Vim visitar dôtôrra...

Suada, com a roupa amarrotada e suja, as tranças despenteadas. Só os olhos brilhavam, como sempre, maliciosos.  Abraçou-me e eu ajeitei-lhe os cabelos, limpei-lhe a cara.  Sentámo-nos, como tantas vezes, no parapeito da varanda, a conversar.

-  Ai, Dáy... Onde é que vives? Vais  à escola? E a tua mãe? O Nini? O Maiquel?,  precipitei-me eu.

Olhou o jardim, espreitou para dentro da cozinha, onde se ouvia o barulho de panelas.

- Tem outra cozinheira, dôtôrra?

E, sem esperar:

-  Gosta dela?... Tem filhos?...

E acrescentou logo, sem se preocupar com a resposta, ou como se tivesse medo de a ouvir:

- Nós?...Oh! A mamã arranjou um  namorado. Ela vive na cidade, nós estamos na Cova Barro, na casa da minha tia. Tem lá muita gente.

Esticava o vestido e abanava as pernas batendo com os pés na parede do varandim.

- E tu, Dáy, tu estás contente?

- Eu?...

Virou a cara para mim e fechou os olhos.

- Eu tenho saudades da dôtôrra...

E as lágrimas caíram das palpebrazinhas cerradas.

Voltou muitas vezes, a visitar-me. 

Depois... Depois, um dia, fui eu que parti... 

Passaram muitos anos  e eu sei que não vou voltar à minha ilha perdida.

- Ai, Dáy, Dáy..., penso.

O que será feito da minha amiga Dáy?


Maria Joao Falcão 

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A minha ilha perdida


Sentada no jardim, imaginava os pássaros de todas as cores que esvoaçavam pela ilha, volteando, fazendo barulho e se calavam, misteriosamente,  quando a chuva caía.
Os pássaros amarelo-e-verdes, que eu via construir os ninhos, entrela-çando fitas de andala, como pequenos cestos que depois baloiçavam nos ramos arqueados da buganvília, ou nos braços doces da goiabeira.
Que num instante desfazem o trabalho meticuloso de tantas horas para irem buscar outro poiso, deixando o ramo de onde pendiam despido e sem vida.
            Os pássaros que saltitam, de arbusto em arbusto, fazendo estalar a comprida cauda negra, fina e móvel: os truqui sum deçu, os passarinhos de Deus que, segundo a lenda são-tomense, vão de manhã acordar o Senhor nos céus. 
            Longe, na floresta, está o ôssobô e o seu canto mavioso que anuncia as chuvas. 
Perto,  na praia Gamboa, na pobreza e no cinzento de tantas vidas fechadas, a poesia das garças brancas e o seu o leve bater de asa suspenso sobre o verde-vivo do capim.
E os pássaros azuis.
E os vermelho-e-negros.
Os infinitos pássaros sem nome que alegram a ilha.
            E, ao cair do dia, no meu jardim, emocionavam-me os crepúsculos rubros, o desenho fino dos coqueiros, sombras estilizadas a escurecer até ao horizonte, onde se confundiam, em linhas sobrepostas de contornos arredondados, com a bruma da floresta montanhosa, o misterioso ôbô.
            Ia imaginando a balaustrada branca que acompanha o Água Grande e segue, depois, à beira do mar azul-turquesa pela estrada Marginal onde as raízes curvae grossas dos caroceiros rebentam os passeios.
            Os caroceiros de folhas verdes, de cetim brilhante, na estação das chuvas, douradas e vermelhas, estriadas de roxo, no fim da Gravana.
            No fim de tarde calmo, na baía  Ana de Chaves, ao pé dos barcos ferrugentos, encalhados há muito, erguem-se as acácias vermelhas com seus ramos horizontais, abertos. E, sempre, a baía na beleza doce, eterna, parada, qual branco vidro coalhado onde pairam barcos.
            Pensava que nunca esqueceria a minha ilha. 
Via-me a acordar, na noite de qualquer cidade longínqua, a fixar o horizonte, de olhar perdido, à procura dos céus enevoados da minha África.
Os céus de fogo, com as árvores da papaia esboçadas a traços de tinta negra. Os coqueiros a inclinarem-se suavemente e as altivas palmeiras imperiais agitando os ramos, loucas despenteadas.
            Nesse momento, viria com as imagens o cheiro da terra molhada, cheiro a queimado e a especiarias, acre e doce, indistinto mas inconfundível, que me envolveu no primeiro dia, a meio do calor sufocante, da confusão de malas, de gritos e empurrões, de risos e de cores.
Voltariam as vozes das gentes da minha casa, os gritos da Milly, as gargalhadas roucas da Dáy, o murmúrio arrastado da Nina, os amuos do Sr. Semedo, as malandrices do Wildger...
            E surgiria, como da primeira vez, a imagem da Baía  Ana de Chaves na noite, com as águas escuras, impenetráveis, cheias de reflexos coloridos dos barcos e das luzes amarelas dos velhos edifícios da Alfândega.

            A linha do horizonte era um risco negro no azul-escuro do mar.



 (Para a Alda  Espírito Santo,amiga desde os  primeiros dias, que me ensinou a amar a Ilha de S. Tomé)

Maria Joao Falcao

Estes contos fazem parte do livro "Ilhas na Bruma", da Coleção "O Canto do ossôbô" (UNEAS), e teve o apoio da Fundação Gulbenkian. Publicado em Abril de 2006.
 

 

7 comentários:

  1. Tenho de ser eu a pôr o primeiro cometário: para agradecer, Rafaela, a sua enorme simpatia em se dispor a publicar o meu conto. Fiquei sensibilizada. É uma honra para mim ficar no seu blog com esta recordação (ainda hoje falo com a Dáy que vive em Angola e tem duas meninas...!)de S. Tomé.
    Obrigada, minha Amiga!
    Maria João Falcão

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  2. Imagina, eu é que agradeço por você compartilhar esses textos tão lindos, aliás mostrei a várias pessoas que também adoraram sua sensibilidade e beleza em mostrar coisas simples, em uma linguagem acessivel, facilitando assim a leitura independente de classe ou cultura, coisa que pouco sabem fazer. Parabéns.

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  3. A Mª. João consegue fazer-nos viver o desejo de ir até São Tomé! Parabéns!!
    Luísa

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  4. É verdade, fiquei morrendo de curiosidade em conhecer a Day... =D

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  5. O mesmo digo eu. estou sempre à espera de mais histórias sobre S Tomé (e não só...).
    a Maria João consegue fazer umas descrições tão bonitas e claras que parece que estamos a ver o que está descrito.Vamo-nos embalando nas suas palavras e até custa quando acabam...
    Quero mais!!!

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  6. Chimberlingue;sinceramente fiquei pasmado em saber, que na minha terra tem escritora de tamanho capacidade;apesar de estar dezoito anos fora, este conto fui pra mim um balsamo, que ajudou-me a relachar, e viajar no tempo que dava a saudades de sair da Ilha de sao Tome e Principe em busca dos outros horizontes.

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